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A música como vocação
Famílias têm a música embutida no genoma, ou a inclinação musical resulta da vivência familiar? Disposição natural, herdada, ou resultado de conjuntura cultural?
Moacyr Scliar
Famílias musicais são um fenômeno freqüente e impressionante. Na música erudita, a família Bach é o exemplo clássico, que se repete, contudo, na música dita popular. Os três filhos de Dorival Caymmi, recentemente falecido, seguiram o exemplo do pai, e aqui entre nós brilha a família Lima, objeto de matéria neste DonnaZH. A pergunta naturalmente ocorre: estas famílias têm a música embutida no genoma, ou a inclinação musical resulta da vivência familiar? Disposição natural, herdada, ou resultado de conjuntura cultural? Questão mais que pertinente: em criança, Mozart não queria ser músico, mas o pai, que exercia a profissão, obrigou-o a isso, não raro cruelmente, e assim surgiu o imortal compositor de “A Flauta Mágica”. Isto nos permite supor que Wolfgang Amadeus tinha uma vocação negada por ele próprio, que seu genitor, bem ou mal, fez aflorar.
Um componente de vocação certamente existe na arte, mas é mais ou menos intenso, variando com a pessoa e com a forma artística. É mais fácil aprender a escrever (ao menos ficção; poesia já é outro papo) do que aprender a tocar um instrumento musical. Afinal, todos escrevemos, todos contamos histórias e todos podemos tentar contar uma história por escrito. Já a música…
Tenho uma curiosa experiência neste sentido. Minha mãe queria que eu aprendesse a tocar um instrumento musical. Nisto seguia uma tradição muito ligada ao judaísmo. Na Rússia, de onde vinha, as comunidades judaicas cultuavam a música, especialmente o violino. Disso deram testemunho mestres como Yehudi Menuhim, Mischa Elman e Jascha Heifetz. Havia, para tal, uma motivação prática: os judeus da Europa Oriental eram, em sua maioria, muito pobres e marginalizados, e fazer de um filho músico, de preferência famoso, significava a garantia de uma carreira que podia ser tão bem-sucedida quanto a medicina, outra clássica opção, com a vantagem de que o filho não precisava enfrentar as barreiras que o governo tzarista colocava contra a entrada de judeus na universidade. Mais: estamos falando de profissões portáteis, que podiam ser levadas pela pessoa em caso de fuga precipitada, o que não era raro.
Minha mãe de início não pensou em violino, e sim em piano, pela simples razão de que, perto de nossa casa, havia uma senhora que dava aulas desse instrumento e cobrava barato. Comecei, ainda que a contragosto, a freqüentar as aulas. Essa professora tinha um método peculiar de ensinar: empunhava uma espécie de ponteiro feito de madeira duríssima que servia, primeiro, para mostrar as notas na partitura, e depois para dar nos dedos do aluno quando este errava. Apanhei tanto nessas aulas que cheguei a uma conclusão: se um dia eu me tornasse um pianista seria o único pianista do mundo sem dedos – porque a professora ia acabar com eles. De modo que desisti. Minha mãe, contudo, era persistente e tentou de novo. Desta vez o instrumento escolhido foi o violino. O professor era um idoso senhor. Não me batia, mas a cara de sofrimento que fazia enquanto eu tocava cortava-me o coração, sobretudo porque eu era o responsável por seu penar: os sons que tirava do violino lembravam os miados de um gato sendo lentamente estrangulado. Os gângsteres estadunidenses descobriram que a caixa do violino era o esconderijo ideal para uma metralhadora; a música que produziam era, pois, mortífera, e a minha, ao menos para aquele pobre mestre, também.
Desisti do violino e fui para o teclado. Não o do piano; o da máquina de escrever, e depois o do computador. Sinto falta de que alguém me bata nos dedos quando erro, o que não é raro, mas desde que ninguém faça cara de sofrimento me lendo, já me sinto consolado. Afinal de contas, a arte foi inventada para nos ajudar a viver melhor.
Fonte: Jornal “Zero Hora” nº. 15719, 7/9/2008.
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