Na metade dos anos 1970, Chico Buarque e Francis Hime estavam reunidos para compor. O pianista tocava uma valsa que havia feito recentemente na esperança do primeiro encaixar uma letra. Francis repetia a música por diversas vezes e Chico, com seu reconhecido perfeccionismo no trato com as palavras, não conseguia avançar. Encasquetado, perguntou ao parceiro se não tinha algum choro para ajudar a espairecer. Por sorte, o amigo tinha vários. Desfilou todos ao piano e, ao final, o que mais impressionou Chico havia sido justamente o primeiro. A partir dali, a valsa foi definitivamente deixada de lado e ele começou a trabalhar em cima da letra daquele novo tema instrumental.
O tal Choro nº1, como era chamado até então, acabaria ganhando versos antológicos de Chico, sendo rebatizado de Meu Caro Amigo. Letrada, a música foi lançada em 1976, inspirando até o nome do álbum Meus Caros Amigos, que chega amanhã às bancas como segundo volume da Grande Discoteca Brasileira Estadão.
O disco, um estouro de vendas na época - 500 mil cópias -, além de histórico na carreira de Chico, divulgou de vez a parceria com Francis. Eles, que já tinham dado provas do poder de seu trabalho em dupla com Atrás da Porta, gravada por Elis Regina.
A atuação de Francis no álbum não foi decisiva apenas no processo de composição com o parceiro. O pianista também assinou o arranjo de sete das dez faixas do disco: O Que Será (À Flor da Pele), Olhos nos Olhos, Vai Trabalhar, Vagabundo, A Noiva da Cidade, Passaredo, Basta um Dia e, obviamente, Meu Caro Amigo. As outras foram arranjadas por Perinho Albuquerque (Você Vai me Seguir e Corrente) e Luiz Cláudio Ramos (Mulheres de Atenas), com mudanças claramente perceptíveis feitas pelos dois violonistas em relação às concebidas pelo pianista Francis.
"Eu fazia os arranjos a partir das ideias que o Chico me passava, prestando muita atenção nas harmonias dele. Procurava não modificar nada, atuando mais como arranjador mesmo. Sem falar que o disco buscava uma produção mais arrojada, com o Sérgio Carvalho. O Chico era bastante exigente. Além disso, gravar com todas aquelas feras ficava fácil, era todo mundo lendo as partituras que eu escrevia. Eu planejava todas as orquestrações antes, fazia as vozes de todos os instrumentos no piano. A orquestra ficava mais integrada com as bases", diz Francis.
Os craques a que ele se refere, só para ter uma ideia do time que gravou Meu Caro Amigo, eram Altamiro Carrilho (flauta), Dino 7 Cordas (violão sete cordas), Abel Ferreira (clarinete), Alceu Maia (cavaquinho), Joel Nascimento (bandolim) e Edmundo Maciel (trombone). A nata dos músicos de choro do País na época.
Além disso, o disco pôde contar com um bom naipe de sopros e cordas, cedidos pela orquestra da própria gravadora, a Philips, e Meus Caros Amigos precisou de menos de três meses, tempo em que foi gravado e mixado, para perdurar até hoje. "É um disco muito importante. Na época, foi um acontecimento. Além das inéditas feitas só pelo Chico, fez também com que nossa parceria fosse mais divulgada a partir dali", conta Francis.
fonte:Lucas Nobile - O Estado de S. Paulo
Chico Buarque - O Que Será (À Flor da Pele)
Trechos extraídos de "Chico - Ou O País Da Delicadeza Perdida", documentário que Chico Buarque estrelou para a televisão francesa em 1990.
Produzido em 1990 e lançado em DVD em 2003 pela BMG.
Este trecho possui um comentário do Chico Buarque sobre A Teoria do Homem Cordial formulada pelo sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, pai de Chico Buarque.
Produção Videofilmes
Direção - Walter Salles, Nelson Motta
Narração Paulo José
O que será (À flor da pele)
Composição - Chico Buarque
O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita
O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os ungüentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite
O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os tremores me vêm agitar
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os suores me vêm encharcar
Que todos os meus nervos estão a rogar
Que todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo
fonte: YuoTube